As Imagens do Espaço no Filme CONTATO[1]
Henrique
César da Silva
“Em
todo o país, deveríamos ensinar às nossas crianças o método científico e as
razões para uma Declaração de Direitos. No mundo assombrado por demônios que
habitamos em virtude de sermos humanos, talvez seja apenas isso o que se
interpõe entre nós e a escuridão circundante.”
(Carl Sagan - O mundo assombrado pelos demônios: a
ciência vista como uma vela no escuro)
“No
porão há escuridão dia e noite. Mesmo com uma vela na mão, o homem vê as sombras
dançarem na muralha negra do porão.”
(Gaston Bachelard - A poética do espaço)
Introdução
Contato, do
diretor Robert Zemeckis, (EUA, 1997), tendo no elenco Jodie Foster, Mathew
Macnaughey e James Woods, é um filme de ficção científica. A história foi criada
por Carl Sagan e Ann Druyan originalmente como um roteiro cinematográfico em
1980. Somente em 1985 foi publicado como um romance escrito por Sagan.[2]
O
enredo é baseado em pesquisas científicas sobre vida extraterrestre
inteligente, das quais o próprio Sagan participou, como o SETI[3], criado
na década de 60 por Frank Drake.
Um
dos pontos altos do filme, além da interpretação de Jodie Foster, são os
efeitos visuais especiais, produzidos pela mesma equipe que trabalhou com
Zemeckis em Forest Gump.
Um
filme pode ser abordado de muitas formas. E nenhuma delas dará conta de tudo.
Escolhemos abordar Contato pela
questão do espaço e sua relação com o
tempo. Neste filme a idéia de espaço
não remete apenas a idéias e conceitos físicos, da astronomia, da cosmologia,
da teoria da relatividade geral e restrita, mas a sentimentos, valores,
afetividade, memórias. Entre outras coisas, o filme trata de extraterrestres,
de viagens através do universo, de representações do universo segundo as
teorias físicas atuais, põe em relevo aspectos éticos, morais, psicológicos,
inconscientes, dos personagens. Por isso optamos por falar do espaço de forma
polissêmica. O espaço interior da personagem Ellie, sua viagem “psicológica”,
seu passado, sua história de vida, seus sentimentos, sua memória. O espaço
exterior, relacionado ao universo, sua viagem pelas galáxias ao encontro da forma
de vida extraterrestre. E a Terra, espaço da única civilização e das únicas
formas de vida que conhecemos até o momento.
O
filme, portanto nos permite pensar os múltiplos sentidos que a palavra e as
imagens do espaço, na tela ou na nossa (in)consciência, sugerem.
As imagens do espaço
A casa de Ellie
A
abertura do filme é um exemplo do fantástico trabalho da equipe de produção de
efeitos especiais. No início, o vazio sonoro e a escuridão na tela, se rompem
com a imagem luminosa da Terra e os “sons” de TV que começam a viajar pelo
espaço. Viajamos juntos pelo espaço e pelo tempo. Partindo da Terra, as ondas
de rádio que transportam “sons” e “imagens da TV”, se afastam na velocidade
espantosa da luz, passando pelos planetas, até perderem-se no espaço, saindo da
nossa galáxia. Já na abertura podemos ver a relação entre tempo e espaço. À
medida em que nos afastamos da Terra as falas em off nos remetem a fatos da história cada vez mais no passado, como
a chegada do homem à Lua, a morte de Kenedy, o macartismo, o fim da segunda
guerra mundial, a ascensão de Hitler na Alemanha. De uma distância absurdamente
grande da Terra, a imagem se transforma penetrando no olho de Ellie, como se
penetrasse em sua alma, o espaço da sua memória. O olhar, “janela da alma,
espelho do mundo”[4].
O
filme inicia com a casa de Ellie na sua infância. Para Bachelard (1978)[5], a casa
é a imagem da intimidade, da segurança. Nas cenas iniciais, estamos dentro de
lar aconchegante, quente, silencioso, seguro. A figura do pai de Ellie nos
ajuda a compor essa imagem. O pai a coloca na cama e a envolve com o cobertor.
Em
O mundo assombrado pelos demônios[6],
Carl Sagan fez um prefácio em que fala da sua infância, da sua casa, de seus
pais. É ali que, segundo ele, aprendeu a ser cientista. É ali que aprendeu
sobre o necessário equilíbrio entre ceticismo e admiração.
“Era um tempestuoso dia de outubro de 1939. Nas ruas ao lado do
prédio de apartamentos, as folhas caídas rodopiavam em pequenos redemoinhos,
cada um com vida própria. Era bom estar dentro de casa, aquecido e seguro,
minha mãe preparando o jantar na cozinha ao lado.”
[7]
No
entanto, a casa de Ellie é uma casa incompleta, pois falta a mãe, que morrera
em seu parto, e depois se tornará completamente vazia com a morte do pai aos
seus nove anos.
Essa
incompletude, também nas cenas iniciais, está relacionada, no imaginário da
personagem, a uma busca. O que é incompleto chama por complementação. Onde estará
a mãe? Será possível se comunicar com ela? Estranha dimensão onde se situam os
entes queridos que se foram. Na imagem da ausência da mãe de Ellie percebemos
um desejo de reencontro, o desejo de busca, o desejo de vencer as limitações da
distância e do tempo. Se voltasse no tempo, poderia encontrar sua mãe, se
encontrasse um atalho no espaço-tempo, poderia ir ao seu encontro. É assim que
podemos ver a menina Ellie diante de seu aparelho de radioamador, tentando
vencer as distâncias que limitam os contatos.
Esses
sentimentos se amplificam com a morte do pai. A diferença é que o pai é uma
imagem viva, experienciada, tocada, sentida. Com sua morte, a falta, a
incompletude tornam-se incomensuráveis.
No
filme, o passado, a casa, o pai, sempre retornam à memória de Ellie. Fazem
parte dela, como algo presente. Numa das cenas de retorno ao seu passado, à
infância feliz, à casa incompleta, vemos o velório do pai. É interessante como
essa seqüência trabalha o vazio da casa de Ellie-criança após a morte do pai. Embora
cheia de gente para o velório, inclusive outras crianças, Ellie entra na casa
imperceptível, como se não houvesse ninguém, sem falar com ninguém, sobe as
escadas e aciona seu radioamador, chorando. É a falta de comunicação que torna
a casa vazia e não a presença/ausência de pessoas.
A
busca, a necessidade do contato com algo além das “nossas” dimensões, do espaço
e do tempo conhecidos, se transformam em profissão. Nesse
momento do filme, assistimos a uma elipse vertiginosa. A menina se transforma
numa mulher adulta. A aprendiz de radioamador se transforma numa
radioastrônoma. O brinquedo se transforma em profissão. O pequeno
e limitado aparelho de radioamador se transforma na gigantesca antena do
radiotelescópio de Arecibo, Porto Rico[8]. Sua
busca por contato, por comunicação se transforma em hipótese científica:
existem serem inteligentes em outros planetas do universo? A casa se transforma
na Terra.
Vencendo os limites do espaço e do
tempo
“A casa é nosso primeiro universo”[9].
Enquanto espaço de incompletude, a casa de Ellie não basta enquanto universo,
pois o que falta deve estar em outro lugar, em outro espaço, em outro tempo. É
assim que a Ellie criança, nas cenas iniciais, pergunta ao pai se seria
possível entrar em contato com mãe. Quais os limites do espaço-tempo?
“A nossa espécie descobriu um meio de se comunicar através da
escuridão, de transcender as imensas distâncias. Nenhum outro meio de
comunicação é mais rápido, nem vai mais longe. É o rádio.[10]
A
busca de contato que resume a vida de Ellie pode ser também concebida como uma
luta para vencer os limites do espaço e do tempo. Nas cenas da morte do pai,
outro retorno ao seu passado no filme, vemos Ellie correndo para buscar o
remédio que poderia ter salvo o pai. Ela corre para cima, sobe as escadas.
Agora, em câmera lenta, o corredor parece interminável, sua velocidade parece
pequena, o tempo parece infinito, sua corrida parece uma luta. Mas, segundo
Einstein, o tempo é relativo, e no andar de baixo o tempo corre, a morte não
espera. Não conseguir vencer o corredor , chegar a tempo, não conseguir salvar
o pai, vai se transformar na pior lembrança da vida de Ellie, vai se
transformar em culpa.
Vencer as limitações do espaço e do tempo é uma questão de
vida ou morte.
Essa
luta de Ellie passa pela sua pesquisa de doutorado que foi o aperfeiçoamento da
sensibilidade dos radiotelescópios, permitindo a captação de ondas de rádio
provenientes de maiores distâncias.
Mas
há uma barreira física para vencer grandes distâncias: o limite máximo da
velocidade da luz, um dos postulados básicos da teoria da relatividade de
Einstein. Mas a ficção científica tem encontrado alguns caminhos, que hoje vêm
sendo discutidos pelos físicos. As complexas equações da Teoria da Relatividade
Geral geram soluções interessantes. Uma delas é “velocidade de dobra” da nave Interprise[11],
no filme Star Trek (Jornada nas
Estrelas) em que o espaço-tempo é deformado, encurtando-se na frente da nave e
alongando-se à traz[12]. Outra
possibilidade está nos chamados buracos
de verme[13],
previstos pela teoria de Einstein, e que, dentro das nossas limitações
imaginativas e sem o auxílio da matemática, podem ser concebidos como túneis no
espaço-tempo plástico. Isso possibilita à imaginação conceber viagens a enormes
distâncias interestelares em poucos segundos. E é assim que Ellie viaja ao
encontro do ET em Contato. Para quem
está na Terra, ela não saiu daqui e se passaram apenas alguns segundos. Para
quem fez a viagem, terá percorrido distâncias astronômicas, intergalácticas, e
terão passado horas.[14] Sua viagem
na Máquina é uma viagem simultânea no tempo e no espaço. A teoria da
relatividade nos dá alguma esperança de contatos distantes, de vencer o
universo, de viajar por ele. E, vencido, Ellie reencontra seu pai, ou pelo
menos a imagem deste.
A Terra como a nossa casa
Outras casas: o universo habitado
Segundo
Bachelard, as imagens da casa seguem dois sentidos: estão em nós assim como nós
estamos nelas. A casa está associada aos valores da intimidade protegida, é o
nosso canto do mundo, onde nos enraizamos, é nosso primeiro universo. “Todo espaço verdadeiramente habitado traz a
essência da noção de casa.”[15]
O
modelo copernicano, colocando a Terra em movimento ao redor do Sol, exigiu da
imaginação dos homens um universo maior, implicou numa mudança de escala.
Copérnico ainda vai considerá-lo finito e fechado, porém maior que o universo
aristotélico-ptolomaico. Já Giordano Bruno, a partir do modelo de Copérnico,
vai considerá-lo infinito e infinitamente habitado. O homem perde seu
privilégio de ser especial perante Deus. Se a Terra não é especial, porque
haveria de ser o único planeta habitado? A ciência do século XX vai apresentar
um universo finito (fechado ou aberto), mas quase incomensurável. Creio que a
concepção hoje bastante veiculada da Terra como a nossa casa seja bastante
recente. Há possibilidade de outras casas nesse universo, possibilidade de
outras vidas, ainda que as enormes distâncias limitem nossas possibilidades de
comunicação e contato.
Mas
se Ellie, em sua infância vencia esses limites, o homem, ultrapassando sua
“infância tecnológica” não poderá vencê-los? Há uma esperança teórica na
Relatividade Geral de Einstein.
Nesse
sentido, a elipse de Contato, que já
comentamos, se aproxima da famosa elipse de 2001:
Uma odisséia no espaço de Stankey Kubrick, quando o hominídeo descobre o
osso como uma arma/instrumento, o atira para cima, e a imagem do osso subindo,
lutando contra a gravidade, se transforma numa nave viajando leve pelo espaço
sideral. Um salto tecnológico, o progresso de uma ferramenta, de um desejo, uma
vitória contra o espaço e a gravidade.
Mas
em Contato, o desenvolvimento
científico-tecnológico é, simultaneamente, condição para vencer esses limites,
e obstáculo, na medida em que esse desenvolvimento, sem uma orientação
ética-moral pode levar à “destruição da Terra”, à destruição desse planeta não
enquanto planeta, mas enquanto casa, morada, lugar do homem e da vida.
A
casa em meio ao universo, em meio a outras casas. A casa é sempre habitação, é
sempre a morada de alguém. A imagem da casa atrai a imagem de seus habitantes.
Preenchemos as outras casas com nós mesmos, porque toda casa é uma casa como a
nossa, ainda que na realidade sejam bem diferentes. Mas a casa é também espaço
de nossas solidões[16]. Entre
duas casas há sempre uma certa distância, assim como há sempre uma
possibilidade de comunicação, e uma secreta, e às vezes indiscreta,
curiosidade. É assim que a imagem da Terra-casa atrai a imagem da solidão. O
universo construído pela física atual nos torna imensamente solitários.
A
associação entre Terra, casa e vida, sendo este, até bem pouco tempo, o único
planeta que conhecíamos, se estende em nossa imaginação para outros lugares no
universo que desconhecemos. A associação é tão forte que após a bomba de
Hiroshima, falamos em destruição da Terra, quando na verdade não seria o
planeta propriamente que seria destruído, mas a sua qualidade de planeta
habitável. Assim que a Terra perdeu seu lugar privilegiado e central no
universo, estas extensões imaginativas puseram vida em tudo quanto é lugar no
universo. No século XVI Kepler já imaginava habitantes na Lua. Depois foram os
marcianos e os venusianos. E hoje é a imagem que temos do sistema solar, com
nove planetas e apenas um habitado, que leva os cientistas a selecionarem
possíveis mundos para procura de vida. Se o céu agora pode ser também o lugar
da vida, antes limitado à Terra, qual será o lugar dos deuses e dos mortos?
Mas
o melhor argumento para a existência de vida extraterrestre inteligente é a
própria dimensão do universo. Numas das cenas iniciais, o pai de Ellie lhe
responde: “Se só nós existíssemos seria um tremendo desperdício de espaço.”,
frase que depois é repetida por Palmer Joss (teólogo e ex-seminarista que terá
um romance com Ellie), antes do primeiro beijo entre o “ceticismo” e
“admiração”, a ciência e a espiritualidade.
Mas
de que espécie de incompletude sofre nossa casa-Terra? De uma incompletude
ética-moral. Nossa casa-Terra é um lugar inseguro, está sempre no limite da
autodestruição, no limite do inabitável. Como cuidamos, como conduzimos, como
vivemos a nossa casa? Essas questões fazem parte do enredo de Contato.
Um mundo desorientado
Para
Carl Sagan o mundo atual está moral e eticamente desorientado, em grande parte,
pela falta da aplicação de um aspecto que ele considera fundamental no método
científico: o ceticismo. No filme há dois personagens arquétipos: um representa
os indivíduos bons, o outro, os indivíduos maus. A ciência não está imune a
esses indivíduos e, como toda a sociedade de Carl Sagan, parece ser o resultado
exclusivo de nossas escolhas individuais. É desta forma que a cientista boa, representada pela personagem
Eleonor Arroway (ou Ellie) se contrapõe durante quase todo o filme ao cientista
mau, representado pelo personagem
David Drumlim (Tom Skerritt). É ele quem corta o financiamento do projeto SETI,
que está por trás do quase cancelamento do contrato do uso do VLA[17] pela
equipe de Ellie. Opositor da pesquisa de busca de vida extraterrestre
inteligente, ele, oportunista, assume a liderança da pesquisa quando é feita a
descoberta por Ellie. Bom e mau não se referem aqui aos critérios da
carreira acadêmica. David Drumlim é reconhecido como excelente cientista, foi
orientador da tese de Ellie, é assessor de ciência da Casa Branca, chefe da
National Science Foudantion. É no aspecto ético e moral que o filme os
diferencia radicalmente.
A
construção da imagem da cientista boa ganha muito com a própria imagem
construída pela mídia sobre a atriz Jodie Foster. Segundo o diretor e a viúva
de Sagan[18], Jodie
Foster foi a primeira e única escolha para o papel, ela representaria melhor do
que ninguém uma figura honesta, inteligente e humilde, de um comportamento
ético e moral inquestionável.
Muitos
cientistas têm se preocupado nas últimas décadas com a questão moral e ética da
ciência. Principalmente depois que os físicos “conheceram o pecado”, nas
palavras de Oppenheimer, chefe do projeto Manhatan que criou a primeira bomba
atômica. Segundo Hobsbawn,
“nenhum período da história foi mais penetrado pelas ciências
naturais nem mais dependente delas do que o século XX. Contudo, nenhum período,
desde a retratação de Galileu, se sentiu menos à vontade com elas.”[19]
A
associação da ciência, ou da racionalidade científica, com a integridade ética
e moral dos indivíduos, é forjada há quase ou mais de um século, principalmente
pelo positivismo do século XIX e início do século XX. A ciência não só
melhoraria enormemente nossas vidas, como nos tornaria melhores enquanto
pessoas. O positivismo, mais do que uma concepção de conhecimento, é muitas
vezes pensado como um atributo do homem. Essa imagem da ciência parece não se
sustentar mais nos dias atuais, assim como a imagem do cientista quase como um
ser de outro mundo, indiferente, impassível, incorruptível e imune às
contraditórias características do demais seres humanos. Ellie não deixa de ser
uma excelente cientista porque possui subjetividade e inconsciente.
No
filme, tanto a ciência quanto a religião fazem parte desse mundo ética e
moralmente desorientado.
Outro
personagem eticamente quase perfeito no filme, que representa o lado religioso
do enredo, é o reverendo Palmer Joss (Matthew Maconaughey). Mais do que
representar uma religião, Joss representa uma espécie de espiritualidade.
O
encontro entre a ciência e a espiritualidade no filme se dá através de uma
relação amorosa entre Ellie e o reverendo Joss. Essa relação pode significar
também o casamento entre o ceticismo e a
admiração[20].
E é nos encontros (e desencontros) entre esses dois personagens que transita o
símbolo da orientação, a bússola moral e ética da verdade. Uma bússola é
trocada entre os dois personagens nas várias cenas em que a verdade e a
sinceridade entre eles parece ameaçada. A primeira cena que aparece a bússola é
quando Palmer Joss conhece Ellie num bar em Arecibo, Porto Rico. Na conversa
ela se esquiva das perguntas de Joss sobre suas pesquisas no observatório. É
quando Joss lhe dá a bússola de presente num tom irônico. Essa cena remete a
dois dos temas mais abordados por Sagan em seus trabalhos: a questão da divulgação
da ciência e do desconhecimento da população em geral sobre as atividades dos
cientistas e aspectos referentes à produção do conhecimento
científico-tecnológico atual, no caso, a militarização. Palmer Joss comenta
como a população local se refere ao observatório de radioastronomia, chamando-o
de El Radar e associando-o com
trabalhos militares de espionagem. Essa associação revela a dualidade do
desenvolvimento científico-tecnológico atual, presente, por exemplo, na questão
da energia nuclear. A militarização das pesquisas científicas é uma das
questões abordadas no filme, encarnada na personagem Michael Kitz (James
Woods). A militarização representaria um desvio dos objetivos da ciência.
Com
a contraposição entre Ellie e Drumlim, dois cientistas, o filme não coloca a
ciência como símbolo ou lugar da integridade ética e moral humanas. A verdade,
no filme, mais do que uma questão epistemológica, é uma questão ética e moral.
A própria ciência, nesse sentido, precisa de uma bússola. Ao falar sobre E. Teller,
criador da bomba de Hidrogênio, autor e defensor do projeto científico-militar Guerra nas Estrelas do governo Reagan,
Sagan diz:
“Hoje as nossas setas envenenadas podem destruir a civilização
global e, muito provavelmente, aniquilar a nossa espécie. O preço da
ambigüidade moral é agora demasiado elevado. Por essa razão - e não por causa
de sua abordagem do conhecimento -, a responsabilidade ética dos cientistas
também deve ser elevada, extraordinariamente elevada, ineditamente elevada.”[21]
E
é na atitude de Ellie em relação ao seu contato com o extraterrestre, que o
filme passa sua receita de orientação. Embora não seja a ciência o símbolo da
moral e da ética, esses conceitos aparecem nos trabalhos de Carl Sagan
relacionados ao equilíbrio entre duas característica que, segundo ele, são
partes fundamentais do pensamento científico: o ceticismo e a admiração.
Quanto
à verdade, o filme a apresenta sob duas formas: a objetiva, relacionada à
ciência, e a subjetiva, relacionada à experiência religiosa. Embora a admiração
nos leve em direção cega à segunda, apenas o ceticismo poderia nos manter no
bom caminho do meio.
É
assim que vemos passar, em meio às multidões desorientadas, o carro da ciência,
do ceticismo, da verdade. Verdade enquanto postura ética-moral, representada
pela personagem Ellie.
Nesse
mundo desorientado, ao assistirmos ao filme, quase ficamos atordoados pelas
imagens da mídia, apresentadas como um verdadeiro caos mediando a distância
enorme que separa os indivíduos dos fatos, sejam eles científicos ou não. O
diretor usa e abusa de imagens da mídia. Às vezes colocadas no plano principal,
no lugar da imagem do filme; às vezes, como um mosaico, ou peças de um
quebra-cabeça, a tela se enche de pequenas telas, que alternam seus canais; às
vezes como parte uma cena em que os personagens assistem à TV. As imagens são
sempre construções. Idéia que parece óbvia quando atribuída ao cinema, mas que
não possui a mesma obviedade quando pensamos na televisão, nos telejornais. A
mídia que aparece no filme é a mídia real americana, incluindo uma imagem
pública do presidente Clinton. Aqui o diretor volta a se utilizar de um recurso
técnico que aparece bastante no seu filme anterior Forest Gump. Vemos então figuras famosas da mídia jornalística
americana como “personagens” do filme. Diversos noticiários misturados a outros
programas de TV aparecem ao mesmo tempo.
Uma casa, um lar, um pai...
O
pai é o ser mais velho e experiente que nos ensina. É o responsável pelos
primeiros passos do nosso desenvolvimento ético e intelectual. É este pai que
aparece no filme, sempre ensinando algo a Ellie. No caso da Terra-casa somos
órfãos, estamos à nossa própria sorte. Em algum “lugar” (no céu) existiria um
pai. O que redime de certo modo nossa culpa, minimiza nossa solidão, justifica
nosso crescimento, nosso caminhar para além da infância. É ele quem irá nos
ensinar.
A
idéia de que a inteligência humana ou aspectos do nosso desenvolvimento
tecnológico estejam relacionados com inteligências alienígenas é bastante
veiculada, e de diferentes maneiras. Há concepções espíritas que sugerem que
cientistas como Einstein sejam reencarnações “luminosas” cuja função seria vir
nos ajudar em nosso desenvolvimento. Em 2001:
Uma odisséia no espaço, há a sugestão de que o monolito extraterrestre esteja
relacionado ao despertar da inteligência humana, quando um ancestral do homem,
transforma um osso num instrumento.
Em
Contato, nas entrevistas para escolha
do tripulante da máquina, quando perguntam o que Ellie diria ao extraterrestre
se tivesse que fazer uma só pergunta, esta responde que perguntaria como eles
conseguiram sobreviver à infância tecnológica sem se auto-destruírem.
A abóbada celeste
E o teto é em
abóbada. Que grande princípio de sonho da intimidade é um
teto em abóbada! Reflete sempre a intimidade em seu centro. Não nos
surpreenderemos se o quarto da torre for a moradia de uma doce jovem e se for
habitado pelas lembranças de um antepassado apaixonado.” [22]
De
fato a representação mais íntima e aconchegante, e provavelmente a mais antiga
que fizemos do céu, é a de uma abóbada. Algumas horas numa noite bem escura e
estrelada, e podemos ver essa abóbada rodar sobre nossas cabeças. De onde
estamos na Terra a vemos meio inclinada, se encontrarmos o único ponto estático
em torno do qual ela gira. Na representação do céu como abóbada celeste, nós
somos o centro do universo, o em cima
e o embaixo são perfeitamente
distinguíveis. Tudo que é terreno e pesado se move para baixo. O céu nos cerca,
nos aninha e nos orienta no tempo e no espaço.
Mas
há séculos que deixamos de ser o centro. Que o inferno e o céu se misturaram.
Nosso universo hoje nem sequer tem um centro. E estamos todos num ponto, um
“pálido ponto azul”[23], como
fotografado pela Voyager 2 quando já estava para além da órbita de Netuno.
“Para nós, no entanto, ela é diferente. Olhem de novo para o
ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos,
que conhecemos, de quem já ouvimos falar, todos os seres humanos que já
existiram, vivem ou viveram as suas vidas. (...)Todos num grão de poeira
suspenso num raio de sol.” [24]
A
abóbada celeste está bastante presente em Contato,
algumas vezes como ligação entre as cenas do presente de Ellie e as cenas de
seu passado, de sua infância. Num dos primeiros encontros com Palmer Joss, eles
estão sob as estrelas, com a imagem do enorme radiotelescópio ao fundo. Ellie
fala do céu, das estrelas, de Vênus, e Joss utiliza uma frase do pai de Ellie,
o que a reporta ao passado, à sua casa. Numa outra cena, Ellie sai de seu
chalé, também em Arecibo, olha para o céu estrelado que se transforma no céu de
sua infância no dia da morte do pai, enquanto esperavam com seus telescópios
pela chuva de meteoros.
O
céu como o lugar do passado está associado a outras imagens e cenas do filme,
além da abóbada celeste, como na abertura do filme, que já comentamos.
O céu é assim, o lugar do presente, do futuro e do
passado. De fato, nós e nossas máquinas apenas molhamos os pés no oceano
cósmico que se estende para além da Terra. Mas nossa imaginação, nossos
valores, emoções, concepções, modelos e teorias, já nos levaram para outras
terras, ilhas, continentes, civilizações para além da Terra.
[1]
Este texto é baseado no trabalho de final de curso apresentado à prof.a
Cristina Bruzzo, no programa da pós-graduação da FE/Unicamp.
[2]
A primeira tradução brasileira é de 1986 pela editora Guanabara. A edição
brasileira mais recente é de 1997 (ano da morte de Carl Sagan) pela Companhia
das Letras.
[3]
Search for Extraterrestrial Inteligence - programa criado por Frank Drake na
década de 1960. Em 1993 o Congresso americano cortou a verba da NASA para esse
projeto, cerca de 12 milhões de dólares.
[4]
Título do texto de Marilena Chauí, in Novaes, A. (org.) - O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
[5]
Bachelard, G. - A poética do espaço.
São Paulo: Abril Cultural, 1978 (coleção Os
pensadores).
[6]
Sagan, Carl - O mundo assombrado pelos
demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. - trad.: Rosaura
Eichemberg. - São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[7]
Idem.
[8]
A antena da Arecibo mede 305 m
de diâmetro e pode receber ondas de rádio vindas de incríveis distâncias
intergalácticas. Pode também enviar mensagens de rádio para o espaço. Essa
antena foi usado no projeto SETI. (confira em Sagan, C. - Pálido ponto azul: uma visão do futuro da humanidade no espaço, p.
411-426)
[9]
Bachelard, idem, p. 200.
[10]
Sagan, Carl - Pálido ponto azul: uma
visão do futuro da humanidade no espaço. - trad.: Rosaura Eichember. - São
Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 412.
[11]
Krauss, L. M. - A física de Jornada nas
Estrelas - Star Trek. São Paulo: Makron Books, 1996. Ver também Folha de
São Paulo - Caderno Mais, 20/06/99.
[12]
Vários físicos têm recentemente publicado artigos em importantes revistas
científicas, discutindo essa possibilidade e seus problemas, como Alcubierre,
M. (1994) - “The warp drive: hyperfast
travel within general relativity” - Classical
and Quantum Gravity, 11 (5); e Krasnikov, S. V. (1998) - “Hyperfast travel in general relativity”.
- Physical Review D, 57 (8). Veja na
Internet em www.lerc.nasa.gov/WWW/PAO/warp.htm.
[13]
Também chamados de buraco de minhoca [wormholes]:
“solução integrante para as equações da
relatividade geral que descreve um gargalo que pode ligar dois universos
completamente separados. Os buracos de verme surgem na discussão da criação de
um universo de laboratório porque o novo universo desaparece por um buraco de
verme, separando-se completamente do universo genitor” (GUTH, A. - O Universo Inflacionário: um relato
irresistível de um das maiores idéias cosmológicas do século. Rio de
Janeiro: Campus, 1997, p. 266).
[14]
Alguns livros de divulgação científica que falam sobre a Teoria da Relatividade
Geral e Restrita e de viagens no tempo são: (1) “Viagens no espaço-tempo” de Jorge Dias de Deus, Lisboa: Gradiva,
1998; (2) “Buracos negros: universos em
colapso” de Ronaldo R. F. Mourão, 5a ed., Petrópolis, RJ: Vozes,
1986; principalmente o capítulo “Dos
buracos negros aos buracos de minhoca: uma passagem entre universos”, p.
31-37; (3) “Círculo do tempo: um olhar
científico sobre viagens não-convencionais no tempo” de Mário Novelo, Rio
de Janeiro: Campus, 1997.
[15]
Bachelard, idem, p. 200.
[16]
Bachelard, idem, p. 203.
[17]
Very Large Array [Arranjo de Longa Base] de radiotelescópios - conjunto de 27 radiotelescópios
situado em Socorro, Novo México, Estados Unidos.
[18]
Em entrevista publicada pelo jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2, 19/09/97.
[19]
HOBSBAWN, E. - Era dos extremos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 504.
[20]
Este é o título de capítulo 17 do livro de Sagan O mundo assombrado pelos demônios, p. 287-299
[21]
Sagan, C. (1996) - O mundo assombrado
pelos demônios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 286.
[22]
Bachelard, idem, p. 213.
[23]
Título de outro livro de Carl Sagan, publicado em 1996, pela Companhia das
Letras.
[24]
Sagan, Carl - Pálido ponto azul: uma
visão do futuro da humanidade no espaço. - trad.: Rosaura Eichember. - São
Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 31.
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